Pesquisa aponta resquícios de velhas práticas em novos serviços de atenção psicossocial (17/04/2008)
“Somente uma ruptura radical com a lógica manicomial poderá ser efetiva na transformação das práticas brasileiras em saúde mental”, afirma Mariana Nogueira Rangel em sua dissertação de mestrado acadêmico em Saúde Pública intitulada ‘A nova cronicidade nos novos serviços de atenção psicossocial’.
De acordo com Mariana, os novos serviços – experiências que se opõem ao modelo manicomial baseado na segregação, hospitalização e isolamento - não podem produzir práticas verdadeiramente inovadoras enquanto se sustentarem pelo paradigma psiquiátrico tradicional.
O trabalho de Mariana foi orientado por Paulo Amarante, pesquisador do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde (Daps/ENSP) e coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental (Laps/ENSP/Fiocruz). Em seu trabalho, Mariana explica que, para muitos autores nos quais ela se baseia, o processo de cronicidade se dá a partir da atitude dos hospitais psiquiátricos de tomar para si a tarefa de ‘curar’ os pacientes. “Pode-se dizer que o hospício, por meio do seu cotidiano e das relações que ali se estabelecem, favorece o aumento ou mesmo a criação da cronicidade nos doentes. Além disso, o caráter iatrogênico - alteração patológica provocada no paciente por diagnóstico, tratamento ou exposição ao meio hospitalar de qualquer tipo - do hospital também pode se reproduzir nos novos serviços”. De acordo com o orientador Paulo Amarante, este é um tema relevante no campo da reforma psiquiátrica brasileira, pois os novos serviços têm construído uma inovadora e importante cultura assistencial. “Esta pesquisa reflete as contribuições dos novos serviços, emblemáticos e fundamentais, na mudança do paradigma que embasa o cuidado em saúde mental”, afirmou ele. Para Mariana Rangel, o crescimento de serviços de atenção psicossocial no Brasil nos últimos anos e a gradativa redução dos leitos psiquiátricos fomenta a discussão do tema e a busca pelo grande desafio: a construção de serviços, de fato, inovadores, substitutivos e opostos ao paradigma psiquiátrico tradicional. “A transformação desse modelo faz parte de um processo crítico interminável de reconsideração de práticas e bases filosóficas”, reiterou ela. Os novos modelos de serviços de saúde mental vêm sendo implementados desde o início da década de 80, impulsionados pela consolidação de um projeto político civilizatório construído no Brasil. Esse projeto englobou a reforma sanitária e a reforma psiquiátrica. A principal crítica dessa renovação foi feita ao modelo manicomial que, de acordo com a autora, contrariava o novo momento político e social do país. “Uma das mais importantes experiências desse processo foi a construção dos primeiros Centros e Núcleos de Atenção Psicossocial (Caps), surgidos no interior de São Paulo”. Outras experiências começaram a surgir em diferentes regiões do país na forma de serviços alternativos. “O novo modelo surgiu a partir da constatação de que era preciso reorganizar a atenção à saúde mental, até então centrada em atendimentos de emergência e nas internações em hospitais psiquiátricos”, comentou ela.Apenas na década de 90, as diversas experiências brasileiras começaram a ser normatizadas e regulamentadas pelo Ministério da Saúde. O novo modelo se baseou em mudanças na relação médico-paciente, tornando esses serviços mais complexos, com base na atuação junto à família e à comunidade. “A pesquisa aborda grande preocupação em relação aos resquícios que os novos serviços ainda guardam do modelo clássico da psiquiatria. Entre eles, podemos destacar a nova cronicidade no campo da atenção psicossocial”, explicou Paulo Amarante. Segundo Mariana, é preciso reconhecer a qualidade e os inúmeros avanços dos novos serviços. Porém, eles não estão isentos de problemas e obstáculos. “A redução de leitos hospitalares não significa, necessariamente, a desconstrução do saber psiquiátrico e das práticas arraigadas nos serviços através da formação dos profissionais, do olhar psiquiátrico preponderante e do saber social a respeito da loucura”, ponderou a aluna, que completou: “ainda que os recursos de trabalhos artísticos, atividades culturais e interlocução com a comunidade se ampliem, esses serviços podem continuar produzindo cronificação”.Pensando em desenvolver melhor o tema, a aluna realizou uma pesquisa qualitativa com técnicos, usuários e familiares de um Centro de Atenção Psicossocial do município do Rio de Janeiro. Essa investigação evidenciou os ganhos alcançados pelo Caps, mas também mostrou que isso não faz dele um serviço verdadeiramente substitutivo. “Ao manter os usuários restritos ao seu interior, o Caps exerce, ao mesmo tempo, as melhores intenções de cuidar e um exercício de controle que pouco colabora para uma nova relação dos usuários com a sociedade mais ampla”, afirmou Mariana. De acordo com Paulo Amarante, “muito embora os avanços sejam significativos, tais serviços também podem produzir novas formas de institucionalização”. Ao final de sua pesquisa, a aluna sugere que a expressão ‘nova cronicidade’ seja abandonada. “Este termo pode ser útil na análise das novas práticas, mas apresenta grandes limitações para o estudo dos novos serviços. Mariana concluiu sua defesa afirmando que não existe um modelo único a ser alcançado. “É importante que os serviços revejam sistematicamente as suas bases, suas práticas e seus embates para que não haja estagnação. Só assim não serão construídos novos edifícios com base em velhos esqueletos. Abandonando o olhar crítico, corremos o risco de reproduzir ou reatualizar velhas estruturas asilares em serviços modernizados”.
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