Alexandre Gonçalves
Por falta de atendimento universal para portadores de AIDS em seus países, estrangeiros que contraíram o HIV têm se mudado para o Brasil para se tratar. Atualmente, pelo menos 1.256 estrangeiros - em situação legal ou clandestinos - estão em tratamento no País, segundo dados do Sistema de Controle Logístico de Medicamentos (Siclom), do Programa Nacional de DST/AIDS. Como 42% das Unidades Dispensadoras de Medicamentos (UDMs) não utilizam o sistema, o número deve ser bem maior. Para se ter uma idéia, só o Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo, não integrado ao Siclom, recebeu 112 estrangeiros em 2006 e 2007.
O programa brasileiro de combate à AIDS, que atende atualmente 180 mil pessoas, é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como referência internacional. As medidas para possibilitar o acesso universal aos medicamentos foram consideradas modelos para as nações pobres que lutam contra a doença.
Mariângela Simão, diretora do programa, ressalta que a distribuição de anti-retrovirais para imigrantes não deve ser vista como uma ação humanitária, mas um direito. "O SUS (Sistema Único de Saúde) tem a função de cuidar de todos os residentes no País, brasileiros ou estrangeiros", diz. "Ação humanitária é o envio pelo Brasil de 3.800 tratamentos para nações da América Latina e África."
'VÁ PARA SÃO PAULO'
O paraguaio Cláudio (nome fictício) descobriu que era portador do HIV ao fazer um exame admissional em uma empresa de Ciudad del Este. Uma médica deu a notícia por telefone, na véspera do Natal de 1993. Ele se mudou, então, para a capital, Assunção. Lá, o tratamento consumiu casa, carro, moto e as mensalidades do último ano da faculdade.
"Gastei mais de R$ 200 mil", afirma. Mesmo assim, perdeu a visão do olho direito, a audição do ouvido esquerdo e sofreu um acidente vascular cerebral que prejudicou sua dicção. Os exames mostravam que sua defesa imunológica era praticamente nula - e ele já perdera um terço do peso normal. O infectologista que acompanhava o caso aconselhou: "Aqui não podemos fazer mais nada por você. Sugiro que vá para São Paulo."
Hoje, aos 34 anos, Cláudio mora em São Paulo, trabalha e gosta de praticar esportes. Precisa tomar cinco anti-retrovirais. Um deles, o T-20, conhecido comercialmente como Fuzeon, custaria US$ 17 mil anuais, cerca de R$ 28 mil. É a droga mais cara do coquetel disponível no País. O SUS fornece o T-20 gratuitamente. Além disso, como vários soropositivos brasileiros, Cláudio também obteve ganho de causa em um processo judicial para receber o medicamento Darunavir, que não estava na lista de importação do Ministério da Saúde.
VETO A SOROPOSITIVOS
O representante do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV e AIDS (Unaids) no Brasil, Pedro Chequer, relembra que, no fim da década de 80, se cogitou restringir a entrada de soropositivos no País. Mas venceu o parecer técnico que demonstrava a irrelevância da medida para o controle da epidemia. "Os Estados Unidos barram a entrada por um motivo diferente: medo de onerar seu sistema de saúde", afirma Chequer, que considera tal medida um equívoco.
Para Mariângela, o Brasil é o melhor exemplo de que vetos como esse são injustificáveis. "Mesmo com atendimento universal e de qualidade, não recebemos uma enxurrada de imigrantes." Ela compara o número de estrangeiros atendidos com a estimativa total dos que recebem anti-retrovirais do programa. Na prática, é uma parcela pequena.
No fim de fevereiro, Mariângela foi a Genebra liderar negociações internacionais para tentar acabar com restrições de viagens para portadores do HIV. Mário Scheffer, um dos diretores da ONG Grupo Pela Vidda, acredita que o programa nacional confere autoridade moral ao Brasil nessa ação.
IDENTIFICAÇÃO
Para retirar os remédios, é necessário apresentar documento de identificação com foto (pode ser o do país de origem), formulário do Programa Nacional de DST/AIDS preenchido pelo médico e receituário em duas vias. Não é costume exigir comprovante de endereço para atestar residência no País. Confia-se na palavra da pessoa, quando informa a rua onde mora. "Não é nossa obrigação fazer o trabalho da Polícia Federal e ver quem está legalmente no País. Estamos aqui para cuidar das pessoas", afirma Mariângela.
O diretor técnico do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, Sebastião André de Felice, adota a mesma postura. "Seria crueldade exigir uma pilha de documentos de alguém que chega muitas vezes necessitado de cuidados urgentes", pondera.
O coordenador da casa de apoio Terra da Promessa da Associação Aliança Pela Vida (Alivi), Angelo de Almeida Lopes, concorda com a flexibilidade na distribuição dos medicamentos. Entre os moradores da casa - aproximadamente 40 - é comum encontrar cerca de 2 estrangeiros. "Os assistentes sociais dos hospitais encaminham essas pessoas para cá."
INTERCÂMBIO
Foz do Iguaçu é um dos poucos lugares onde os requisitos para ingressar no tratamento são mais rigorosos. A coordenadora do Programa Municipal de DST/AIDS, Rosa Maria Lima, explica que, há dois anos, todos os meses, três paraguaios procuravam ajuda no Serviço de Atendimento Especializado (SAE). "Havia estrutura para realizar os exames de CD4, genotipagem e carga viral, pois eram financiados pelos governos federal e estadual. Mas o município não conseguiria arcar com os exames de rotina: tomografia, exames de sangue."
Decidiram, então, encaminhar os estrangeiros não residentes no Brasil para tratamento em Ciudad del Este. "Em 2006, o Brasil iniciou um intenso diálogo com o Paraguai para trocar experiências. Desde então, o serviço deles melhorou bastante", afirma Rosa. "Aqueles que comprovam residência no Brasil são atendidos aqui e recebem toda assistência para regularizar, o mais rápido possível, sua situação legal." Atualmente, 27 paraguaios são atendidos em Foz do Iguaçu.
ALÉM-MAR
No fim da década de 90, o angolano Roberto (nome fictício), pertencia a uma ONG que recebia dinheiro da Agência Americana para Desenvolvimento Internacional (Usaid). Pretendia-se desenvolver um programa de combate eficaz à epidemia em Angola. Veio, então, com uma comitiva, para conhecer o programa brasileiro. Visitou o CRT-DST/AIDS em São Paulo, a Alivi e a própria sede do programa em Brasília.
Poucos meses depois de voltar para Angola, sua saúde piorou drasticamente. Resolveu, então, voltar para o Brasil.
Já tinha os contatos e foi muito bem recebido. Desde então, tem sido tratado no CRT/DST-AIDS. Permaneceu durante algum tempo em uma casa da Alivi. Hoje, tem moradia própria e trouxe mulher e filhos para cá. Refez os estudos e profissionalizou-se. Sente saudades da sua terra natal, mas não pretende voltar.
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas 6 mil pessoas recebem anti-retrovirais em Angola, cerca de 10% das 66 mil pessoas que necessitam do tratamento.
A história de Roberto é semelhante ao itinerário de muitas pessoas que vieram do continente africano para tratar-se no Brasil. A maior parte da população não teria condições para empreender a viagem.
Contudo, o engajamento em ONGs que recebem apoio internacional traz consigo oportunidades em outros países.