22/04/2008

Acesso universal a drogas antiaids atrai estrangeiros para o Brasil

Acesso universal a drogas antiaids atrai estrangeiros para o Brasil
Sem poder pagar pelos remédios em seus países de origem, imigrantes são atendidos por programa nacional

Alexandre Gonçalves

Por falta de atendimento universal para portadores de AIDS em seus países, estrangeiros que contraíram o HIV têm se mudado para o Brasil para se tratar. Atualmente, pelo menos 1.256 estrangeiros - em situação legal ou clandestinos - estão em tratamento no País, segundo dados do Sistema de Controle Logístico de Medicamentos (Siclom), do Programa Nacional de DST/AIDS. Como 42% das Unidades Dispensadoras de Medicamentos (UDMs) não utilizam o sistema, o número deve ser bem maior. Para se ter uma idéia, só o Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo, não integrado ao Siclom, recebeu 112 estrangeiros em 2006 e 2007.

O programa brasileiro de combate à AIDS, que atende atualmente 180 mil pessoas, é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como referência internacional. As medidas para possibilitar o acesso universal aos medicamentos foram consideradas modelos para as nações pobres que lutam contra a doença.

Mariângela Simão, diretora do programa, ressalta que a distribuição de anti-retrovirais para imigrantes não deve ser vista como uma ação humanitária, mas um direito. "O SUS (Sistema Único de Saúde) tem a função de cuidar de todos os residentes no País, brasileiros ou estrangeiros", diz. "Ação humanitária é o envio pelo Brasil de 3.800 tratamentos para nações da América Latina e África."

'VÁ PARA SÃO PAULO'

O paraguaio Cláudio (nome fictício) descobriu que era portador do HIV ao fazer um exame admissional em uma empresa de Ciudad del Este. Uma médica deu a notícia por telefone, na véspera do Natal de 1993. Ele se mudou, então, para a capital, Assunção. Lá, o tratamento consumiu casa, carro, moto e as mensalidades do último ano da faculdade.

"Gastei mais de R$ 200 mil", afirma. Mesmo assim, perdeu a visão do olho direito, a audição do ouvido esquerdo e sofreu um acidente vascular cerebral que prejudicou sua dicção. Os exames mostravam que sua defesa imunológica era praticamente nula - e ele já perdera um terço do peso normal. O infectologista que acompanhava o caso aconselhou: "Aqui não podemos fazer mais nada por você. Sugiro que vá para São Paulo."

Hoje, aos 34 anos, Cláudio mora em São Paulo, trabalha e gosta de praticar esportes. Precisa tomar cinco anti-retrovirais. Um deles, o T-20, conhecido comercialmente como Fuzeon, custaria US$ 17 mil anuais, cerca de R$ 28 mil. É a droga mais cara do coquetel disponível no País. O SUS fornece o T-20 gratuitamente. Além disso, como vários soropositivos brasileiros, Cláudio também obteve ganho de causa em um processo judicial para receber o medicamento Darunavir, que não estava na lista de importação do Ministério da Saúde.

VETO A SOROPOSITIVOS

O representante do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV e AIDS (Unaids) no Brasil, Pedro Chequer, relembra que, no fim da década de 80, se cogitou restringir a entrada de soropositivos no País. Mas venceu o parecer técnico que demonstrava a irrelevância da medida para o controle da epidemia. "Os Estados Unidos barram a entrada por um motivo diferente: medo de onerar seu sistema de saúde", afirma Chequer, que considera tal medida um equívoco.

Para Mariângela, o Brasil é o melhor exemplo de que vetos como esse são injustificáveis. "Mesmo com atendimento universal e de qualidade, não recebemos uma enxurrada de imigrantes." Ela compara o número de estrangeiros atendidos com a estimativa total dos que recebem anti-retrovirais do programa. Na prática, é uma parcela pequena.

No fim de fevereiro, Mariângela foi a Genebra liderar negociações internacionais para tentar acabar com restrições de viagens para portadores do HIV. Mário Scheffer, um dos diretores da ONG Grupo Pela Vidda, acredita que o programa nacional confere autoridade moral ao Brasil nessa ação.

IDENTIFICAÇÃO

Para retirar os remédios, é necessário apresentar documento de identificação com foto (pode ser o do país de origem), formulário do Programa Nacional de DST/AIDS preenchido pelo médico e receituário em duas vias. Não é costume exigir comprovante de endereço para atestar residência no País. Confia-se na palavra da pessoa, quando informa a rua onde mora. "Não é nossa obrigação fazer o trabalho da Polícia Federal e ver quem está legalmente no País. Estamos aqui para cuidar das pessoas", afirma Mariângela.

O diretor técnico do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, Sebastião André de Felice, adota a mesma postura. "Seria crueldade exigir uma pilha de documentos de alguém que chega muitas vezes necessitado de cuidados urgentes", pondera.

O coordenador da casa de apoio Terra da Promessa da Associação Aliança Pela Vida (Alivi), Angelo de Almeida Lopes, concorda com a flexibilidade na distribuição dos medicamentos. Entre os moradores da casa - aproximadamente 40 - é comum encontrar cerca de 2 estrangeiros. "Os assistentes sociais dos hospitais encaminham essas pessoas para cá."

INTERCÂMBIO

Foz do Iguaçu é um dos poucos lugares onde os requisitos para ingressar no tratamento são mais rigorosos. A coordenadora do Programa Municipal de DST/AIDS, Rosa Maria Lima, explica que, há dois anos, todos os meses, três paraguaios procuravam ajuda no Serviço de Atendimento Especializado (SAE). "Havia estrutura para realizar os exames de CD4, genotipagem e carga viral, pois eram financiados pelos governos federal e estadual. Mas o município não conseguiria arcar com os exames de rotina: tomografia, exames de sangue."

Decidiram, então, encaminhar os estrangeiros não residentes no Brasil para tratamento em Ciudad del Este. "Em 2006, o Brasil iniciou um intenso diálogo com o Paraguai para trocar experiências. Desde então, o serviço deles melhorou bastante", afirma Rosa. "Aqueles que comprovam residência no Brasil são atendidos aqui e recebem toda assistência para regularizar, o mais rápido possível, sua situação legal." Atualmente, 27 paraguaios são atendidos em Foz do Iguaçu.

ALÉM-MAR

No fim da década de 90, o angolano Roberto (nome fictício), pertencia a uma ONG que recebia dinheiro da Agência Americana para Desenvolvimento Internacional (Usaid). Pretendia-se desenvolver um programa de combate eficaz à epidemia em Angola. Veio, então, com uma comitiva, para conhecer o programa brasileiro. Visitou o CRT-DST/AIDS em São Paulo, a Alivi e a própria sede do programa em Brasília.

Poucos meses depois de voltar para Angola, sua saúde piorou drasticamente. Resolveu, então, voltar para o Brasil.

Já tinha os contatos e foi muito bem recebido. Desde então, tem sido tratado no CRT/DST-AIDS. Permaneceu durante algum tempo em uma casa da Alivi. Hoje, tem moradia própria e trouxe mulher e filhos para cá. Refez os estudos e profissionalizou-se. Sente saudades da sua terra natal, mas não pretende voltar.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas 6 mil pessoas recebem anti-retrovirais em Angola, cerca de 10% das 66 mil pessoas que necessitam do tratamento.

A história de Roberto é semelhante ao itinerário de muitas pessoas que vieram do continente africano para tratar-se no Brasil. A maior parte da população não teria condições para empreender a viagem.

Contudo, o engajamento em ONGs que recebem apoio internacional traz consigo oportunidades em outros países.

Programa Nacional de DST/AIDS