Repórter do GLOBO testemunhou julgamento de exceção de um menor por nove traficantes
O tribunal do tráfico realizou, na semana passada, mais uma sessão numa favela carioca. Nove traficantes, armados de metralhadoras e fuzis, conduziram no alto de um morro o julgamento ilegal de um rapaz de 15 anos que praticava roubos na própria comunidade.
Capturado de madrugada, o menor foi algemado e barbaramente torturado: tomou choque elétrico, teve garrafas quebradas em seu corpo, foi espancado com pedaços de madeira, sufocado com fita crepe e recebeu uma facada nas costas. Os traficantes estavam decididos a matá-lo, quando o pastor Marcos Pereira intercedeu e começou a sua defesa. O repórter MAURO VENTURA testemunhou a sessão, onde o gerente do tráfico foi o "juiz"; um comparsa, o "promotor"; e a figura mais temida era "o amigo que corta", o bandido carrasco encarregado de executar a sentença de morte, esquartejar a vítima e dar sumiço ao corpo. No fim do julgamento, a pena de morte foi convertida em exílio. O jovem, que já fora torturado outras vezes, admitiu que achava mais fácil roubar do que entrar para o tráfico: "É mais perigoso. Vi 'Tropa de elite'. Pensava no Capitão Nascimento e ficava com medo dele."
Ladrão é réu onde bandido vira juiz
Garoto que rouba em favela é barbaramente torturado e enfrenta, em meio a uma platéia de moradores, um julgamento realizado por nove traficantes
Mauro Ventura
Do alto-falante da birosca saem versos — "eu só quero amar/eu preciso amar" — que soam irônicos para a ocasião, mas B. está mais preocupado com a arma engatilhada à sua frente do que com a trilha sonora que provavelmente embalará sua morte. "É agora que vou para o caixão", lamenta-se, enquanto o suingue do cantor Bebeto preenche o ambiente com a música "Cheiro de rosa", num curioso contraste com o forte odor de sujeira e pânico que sai de B. Quase tão doloroso quanto o pensamento alarmante é saber que sua mãe tinha dito, mais cedo: — Nem adianta eu pedir o corpo porque não tenho dinheiro para enterrar.
É uma oportunidade rara aquela, e alguns moradores da favela tratam de aproveitá-la. A cena lhes é familiar — não é a primeira vez que vêem o destino de um bandido ser decidido à sua frente, em meio a uma área pública do morro — mas o réu tem características específicas. Ao contrário dos estupradores e "X-9" habituais, o garoto de 15 anos que está sendo julgado no tribunal do tráfico naquela segunda-feira à noite é um "rato de favela".
Traduzindo: um ladrão que rouba dentro do próprio morro. Com um agravante: um ladrão reincidente.
— Dificilmente aparece um rato de favela — diria mais tarde um evangélico presente à sessão. — Se os traficantes liberam, ele vai dar cria, vai continuar roubando no morro.
Ou seja, na lógica do crime, tudo bem assaltar, desde que da favela para fora. De onde está, B. consegue escutar as manifestações populares. E não está gostando nada do que ouve.
Desde cedo, alguns moradores vêm demonstrando compaixão — "Pô, o que é que tu fez dessa vez?", "Tu é bom, não tem necessidade de fazer isso" — mas a maioria é hostil: "Tem que matar", "Merece morrer", "Tem que ir para fora do morro", "Tem que passar o cerol". B. sabe que é culpado até o pescoço, mas a perversidade dos bandidos e a expiação em praça pública estavam sendo demais até para quem, como ele, é veterano em levar coças dos traficantes.
O medo de encarar o "amigo que corta"
Algemado e com os pés amarrados, B. já está sendo torturado há quase 24 horas. "Não entendo como agüenta tanta paulada. Meu irmão, nós batemos muito nele", contaria depois um traficante. B. pensou em pular num abismo, achando que só quebraria as pernas, mas as algemas, os pés amarrados e um vigia sempre de olho impediram o gesto que resultaria em sua morte. A certa altura do calvário, ouviu dizer que iam chamar o "amigo que corta" — o homem do bando responsável por matar e fatiar os corpos.
Por sorte, o telefone estava descarregado.
O marginal fora o mesmo que, anos antes, quase dera cabo de seu tio. O irmão de sua mãe hoje está preso, mas carrega no corpo as marcas da surra de chicote de cavalo que levou.
Ele também era "rato de favela".
— Peguei o ritmo dele — diz B.
A chuva forte que caíra mais cedo dera uma trégua, mas ainda assim o Land Rover sobe penosamente as vielas do morro, desviando-se de crianças, velhos, adultos, cães, motos e carros na contramão. O veículo tem um aparelho que sinaliza a proximidade com obstáculos, e a máquina não cessa de apitar. A pressa é grande.
— Tudo por uma alma — diz uma das irmãs.
No carro vai um grupo de evangélicos da Assembléia de Deus dos Últimos Dias, convocado momentos antes para tentar evitar a morte de B.
As perspectivas são desanimadoras.
Dias antes, eles já tinham penado para convencer os traficantes a liberar B., mas o garoto não ficou nem dois dias na igreja. Fugiu — "não agüento usar calça", alegou — e voltou à favela para ver a mãe e os irmãos. Capturado, foi novamente a julgamento no tribunal paralelo do morro.
Aquele "exército" religioso foi chamado por dois irmãos da igreja, que estavam na favela panfletando e orando pelos enfermos. Rogério Menezes e Álvaro Silva foram abordados por moradores, que avisaram: "Tem um garoto amarrado para morrer". Pelo olhar, eles foram ditando o caminho à dupla, já que tinham medo de denunciar o esconderijo. Tomaram um susto ao descobrir que era o mesmo rapaz que já tinham libertado.
— Percebemos que ele tinha fugido da igreja ao procurá-lo para dar um pedaço de bolo. Era aniversário de uma cantora nossa — diz Menezes.
Para voltar à comunidade, B. pulou a janela de um ônibus, sob o olhar complacente do motorista, que viu e começou a rir. Depois se escondeu no chão de outro veículo, que estava no ponto final, e retornou ao morro.
Mas dessa vez Menezes e Silva não tiveram sucesso em libertá-lo.
Após duas horas, decidiram recorrer a seu líder, o pastor Marcos Pereira, fundador da igreja, tarimbado na tarefa de salvar gente condenada pelo tráfico — ainda que ele prefira transferir os créditos para Deus. Na chegada à favela, o pastor é recebido por nove traficantes armados.
— Sou um homem que trabalha na Faixa de Gaza — disse o religioso posteriormente.
Ele pergunta pelo garoto e um deles ironiza: — Tá ali, confortável, bonitinho.
Esse bandido vai ser o promotor daquele julgamento extra-oficial, uma espécie de TRT — Tribunal Regional do Tráfico. Foi indicado ao cargo pelo juiz — ou melhor, pelo chefe do morro — que, em vez de um martelo, porta uma metralhadora. E, no lugar da beca, traja chinelo, camiseta, bermuda, mochila e boné. Em contraste com a linguagem floreada, usa gírias e um vocabulário rude.
"Quer ver eu te matar na frente do pastor?"
O julgamento de B. teve lugar em dois pontos da favela. Começou num beco, ao lado de uma ribanceira, para onde é conduzido o pastor Marcos Pereira logo que chega ao morro. Ele se assusta com o estado de B.
— Olha como é que tá você, ô cara.
O traficante ameaça o rapaz: — Eu vou te matar agora, quer ver eu te matar na frente do pastor? — Pelo amor de Deus, deixa eu fazer uma oração, deixa eu orar por você — pede Pereira.
— Não bota a mão na minha cabeça, não — afasta o bandido .
Diante da reação ríspida, um pensamento inquietante passa pela cabeça do pastor evangélico: "Ele deve ser macumbeiro." Pereira faz uma oração para B. — "Tá amarrado, Satanás, é o demônio, manifestou, é o espírito do roubo" —, mas percebe que o traficante continua intransigente.
Como bom advogado, muda de estratégia e finge entrar no jogo do bandido. Dirigese ao rapaz, com voz firme: — Estou sendo esculachado por causa de tu, tu é safado — diz, enquanto dá uns tapas no peito de B.
"Tu é defunto ambulante"
A negociação prossegue. O pastor faz suas alegações — "eu me responsabilizo de novo, sei que vocês me consideram" —, o garoto se defende com voz hesitante, abafada pela fita crepe que envolve sua boca — "vou tomar juízo" — e o bandido lança mão de seus argumentos — "tu é defunto ambulante, não tem mais salvação nenhuma, vai demorar dez dias e vai parar na minha mão de novo". Enquanto fala, aperta com firmeza um ferimento a faca nas costas de B., que faz força para não gritar.
Naquele fórum improvisado, a audiência se prolonga, com novas ameaças, até que Pereira consegue levar o rapaz para o meio da favela, onde vai se desenrolar a etapa final do julgamento.
Quando o pastor está se aproximando do carro, vem o susto maior: o bandido se aproxima de B. e balança a arma engatilhada diante de seu rosto, com a canção de Bebeto como fundo musical. Alguns moradores passam indiferentes. Outros assistem à distância, dos bares ou da janela de casa.
— Faz isso não, vai me desrespeitar — suplica o pastor.
— Eu respeito, mas esse moleque não tem jeito, não.
O pastor lembraria mais tarde : — Na hora em que ele apontou a arma, meu coração gelou como nunca. Eles gostam de matar na frente de um monte de gente para servir de exemplo e botar moral. Fiquei nervoso, e não sou de ficar. Vi a sede que estavam de matar o garoto.
De fato, naquele circo romano, a sentença dava a impressão de estar decidida. Parecia que o pastor e a vontade divina iriam falhar, após B. se dar ao luxo de ter sobrevivido à brutalidade de seus carrascos.
Ele fora capturado de madrugada, escondido em casa. O portamalas de um carro serviu de cárcere, enquanto os bandidos iam a um baile funk. Mas, quando se mexia, o alarme tocava e os traficantes vinham correndo, achando que estavam tentando furtar o veículo. Apanhava toda vez. Numa das surras, quebraram duas garrafas de uísque em seu joelho. Levou pancada de "perna de três" — pedaço grosso de madeira usado para escorar laje —, tomou choques elétricos, sofreu pisões no rosto, foi obrigado a comer cinco vidros de pimenta, teve a unha quase arrancada a faca, recebeu pedradas e uma facada nas costas.
Enquanto tiravam pele de seu tornozelo, seus algozes diziam: — Olha como a faca está amoladinha.
A certa altura, foi posto debaixo do chuveiro e jogado na fogueira. Escapou com queimaduras no braço esquerdo. No porta-malas, teve o rosto todo embrulhado com fita crepe.
Chegou a desmaiar por falta de ar. Uma idéia apavorante assaltoulhe: o "microondas" — ser queimado dentro de pneus.
— Me mata logo, não agüento mais sofrer — suplicou.
E essa seria sua pena, que acabou convertida em exílio na igreja do pastor, no bairro de Éden, em São João de Meriti.
Após convencer os bandidos, Pereira forma um círculo e faz uma oração: — Vamos dar uma rajada em Satanás, vamos dar um glória a Deus bem alto.
— Glória a Deus! — repetem os marginais.
— Se não fosse Deus, eu estaria no caixão — balbucia B.
Indignado com o veredicto, um dos traficantes diz: — Da próxima vez, quem vai matar sou eu.
"DIFÍCIL MANTER O SANGUE-FRIO"
Na hora em que chegamos ao ponto mais alto da favela, perguntei ao pastor Marcos Pereira se não era melhor ele me apresentar de cara aos bandidos. Era uma preocupação natural. Ao contrário dos evangélicos, que estavam de terno, eu vestia camiseta e calça jeans. Claramente não fazia parte do grupo de fiéis. Ele disse: 'Não, fica tranqüilo, pode saltar.' Mas é difícil manter o sangue-frio quando se está cercado por nove traficantes, com metralhadoras penduradas no ombro, fuzis carregados na mão e pistolas enfiadas na cintura.
Eles perceberam que eu não pertencia à igreja, mas, como estava junto aos fiéis, deviam imaginar que era de confiança do pastor. Foi bom não ter sido apresentado de imediato, porque não saberia até que ponto minha presença influenciaria a sentença.
Somente no fim, na hora em que o pastor reuniu todo o bando para uma oração, é que um dos bandidos perguntou: 'Mas quem é esse cara?'.
O pastor explicou que eu era jornalista do GLOBO e que estava acompanhando seu trabalho. Eles advertiram que eu não poderia citar sequer o bairro onde se localiza a favela."
DITADURA NAS FAVELAS
A série "Os brasileiros que ainda vivem na ditadura", publicada no ano passado pelo GLOBO revelou a rotina de 1,5 milhão de moradores de favelas do Rio com direitos violados diariamente. Vinte e dois anos após o fim da ditadura militar, a série denunciou os métodos utilizados por traficantes, milicianos e maus policiais, com casos de torturadores que espancam, queimam e cortam partes das vítimas em sessões públicas de barbárie.
A série revelou ainda que, em 14 anos, traficantes, milicianos e policiais corruptos foram responsáveis pelo desaparecimento de 7.324 pessoas, 54 vezes mais do que o número de desaparecidos nos "anos de chumbo", segundo o Grupo Tortura Nunca Mais. Em outra reportagem, sobre execuções, estudos mostraram que a taxa de jovens assassinados em favelas do Rio é sete vezes maior do que o índice fora das comunidades.
A série revelou ainda a existência de moradores exilados que foram obrigados a abandonar suas casas para tentar escapar da morte. Além disso, mostrou que, na favela, prevalece a política do "pé na porta", de invasão de domicílios sem respaldo legal.
A cassação do direito de ir e vir e a censura também foram temas da série. Na Praia de Ramos, milicianos haviam construído um muro de três metros de altura com portões de ferro que são fechados às 22h, transformando a favela numa cidadela.
Barreiras também são usadas para restringir o acesso às comunidades. E, nas favelas dominadas pelo tráfico e pela milícia, há músicas censuradas e até monitoramento de e-mails.
PENA DE MORTE AO RÉU
Pelo Código Penal, se fosse maior de idade, B. poderia ser condenado a uma pena de um a quatro anos, e multa (furto, artigo 155) e de quatro a dez anos, e multa (roubo, artigo 157). Como tem menos de 18, cumpriria no máximo três anos de medidas sócioeducativas numa instituição para menores infratores.
Mas, no código da bandidagem, a história é outra. B.
furtava e roubava dentro da favela, o que pelas leis locais é falta muito grave, assim como a cagüetagem e o estupro. Ele poderia ser condenado à morte, pena que não existe na Justiça brasileira — a não ser em caso de guerra.
B. deu muita sorte. Contou com um "advogado", na figura do pastor Marcos Pereira, e dois "assistentes de defesa": Rogério Menezes e Álvaro Silva. Menezes e Silva, que já estiveram envolvidos com o tráfico, largaram o crime, converteram-
Mas, em geral, os réus não têm quem os defenda.
O tribunal do tráfico é um tribunal de exceção.
— É um tribunal típico dos regimes absolutistas, despóticos — diz a juíza Luciana Fiala. — É aquele em que o órgão julgador é também aquele que acusa. Quem está acusando é também quem vai prolatar a sentença.
A coincidência entre os órgãos acaba com a imparcialidade necessária ao julgamento.
— As partes devem estar eqüidistantes do juiz. No caso desses "tribunais", inexiste qualquer garantia processual de direito à defesa, ao silêncio, ao contraditório, de direito do acusado de tomar conhecimento e ciência das acusações que lhe são imputadas, de participar de todos os atos processuais.
VIDA DE ROUBOS E SURRAS
Uma semana após quase ser morto pelos traficantes, B. tinha trocado a camiseta, a bermuda e o chinelo por um terno cinza-chumbo, uma gravata e um sapato dados pela Assembléia de Deus dos Últimos Dias. Ainda exibia marcas da tortura, como queimaduras no braço. A sede da igreja está em obras, e ele tem ajudado no trabalho.
O pastor acredita que B. enfim tomou juízo: — Ele estava criando problema com os irmãos da igreja, discutindo. Agora está bonzinho. Mas se for embora de novo não tem jeito.
B. não se furta a contar sua história. Diz que tem quatro irmãos e um "pávim". Pávim? É o "para vir" — sua mãe está grávida do sexto filho. Ele fez 16 anos dia 20 — três dias depois de seu julgamento. A mãe, de 30 anos, é viciada.
Cada filho é de um pai diferente — ele nunca conheceu o seu. Estudou até a 3asérie.
Parou há um ano porque uma professora furou seu braço com a unha, pensando que ele tinha apagado o quadronegro.
A mulher foi expulsa e não entrou ninguém no lugar.
Ele tentou retornar às aulas, mas faltou a foto três por quatro, que sua mãe não teve dinheiro para pagar.
A carreira de ladrão começou aos 14 anos, quando pegou um quilo de arroz num mercado na entrada da favela.
Depois, leite do vizinho e um quilo de feijão do padrinho, que falou com a mãe de B. Apanhou de cinto e não aprendeu. Roubou o celular de um morador, invadiu barracos para pegar tênis, até que entrou na casa de um bandido. Foi levado para a boca-de-fumo, ganhou uma chance, mas continuou: shorts, camisetas, dinheiro, refrigerantes, tênis, televisores.
Às vezes era pego, tomava uma surra — paulada, facada, garrafada — e tinha que ficar uns tempos fora da favela. Dormia na praia, esmolava, mas voltava.
Num dia, roubou um relógio de ouro de um "homem que compra roubo", os moradores o seguraram e chamaram a lei local — os bandidos.
Mais surras, mais ameaças, até que perguntaram se ele não tinha disposição para assaltar na "pista" — fora da favela. Ganhou uma pistola velha, foi para o Méier e roubou um Audi onde havia uma mala com R$ 3 mil. Vendeu o carro para os bandidos por mil reais. Mas achava mais fácil roubar no morro. Nunca quis entrar para o tráfico: — É mais perigoso. Vi "Tropa de elite". Pensava no Capitão Nascimento, ficava com medo dele.
O crime sagrado de divergir e ser conseqüente nós o cometeremos sempre...
Contra a cidade inteira, contra o mundo inteiro e sozinha, se for necessário.
Patrícia Galvão - Pagu