O inimigo está entre nós
Ivan de Faria Vieira Jr.* e Paulo Jorge Ribeiro**
Fritz Lang, em 1931, presenteou o mundo com uma obra de arte cinematográfica de impressionante atualidade. “M” ou “O vampiro de Düsseldorf”, como aqui ficou conhecida, narra a trajetória de um pedófilo homicida que mata crianças em série na Alemanha do início do século passado. Hans Beckert, personagem encenando por Peter Lorre, de maneira magistral, é avidamente procurado pela polícia em meio ao pânico coletivo, histeria social e denuncismo desenfreado que assolou a população da cidade alemã após o início de seus crimes. Impelido, não apenas, mas basicamente, por um pragmatismo asséptico – as investidas policiais prejudicavam seus ‘negócios’ –, o crime organizado local se mobiliza para capturar o odioso serial killer. Sempre um passo à frente da polícia, o ‘sindicato do crime’ não tarda a localizá-lo, prendê-lo e julgá-lo por meio de seu próprio ‘tribunal’.
As semelhanças do clássico filme com a corajosa reportagem de Mauro Ventura, sobre o tribunal do tráfico, veiculada pelo O Globo em 30/3/2008, nos faz perceber que, longe de ser mera coincidência, essa forma de ‘justiçamento’ é muito mais comum – e antiga – do que alguns poderiam supor. Indo além, mostra-se lícito extrair dessa comparação, da vida em relação à arte, que outros tantos episódios dramáticos presentes na história de nossa cidade, desde a execução do bandido ‘Mineirinho’, passando pelo ‘Massacre da Candelária’ e tantos outros, até mesmo à parte das muitas mortes promovidas nas últimas operações policiais nas favelas cariocas como Vila Cruzeiro e Vila Aliança, entre tantas histórias, outras estão intimamente conectados por uma questão nevrálgica, bem explicitada no filme do diretor austríaco.
Em simples e singelas duas frases, nas seqüências finais do filme, o diretor consegue dimensionar de maneira ímpar o cerne dessa complexa problemática. Prestes a ter sua pena executada pelo ‘tribunal’ de exceção montado pela organização criminosa, o homicida é resgatado pela polícia, que exclama heroicamente: “Em nome da lei...”. Logo em seguida, é levado a um Tribunal legítimo, instituído por um Estado de direito – uma genial paródia a uma Alemanha já sob a influência dos ‘camisas-pardas’, nacional-socialistas que, dois anos após a rodagem do filme, chegam ao poder por intermédio de seu líder Adolf Hitler – o assassino Hans Beckert ouve o juiz, togado, iniciar seu discurso de julgamento em tom solene: “Em nome do povo...”.
De um lado, o braço armado do Estado, subserviente à soberania da lei; do outro, o braço judicial do Estado, subserviente à soberania do povo. Esse é o divisor de águas. A presença do personagem que quase passa despercebido, mas que tem fundamental relevância, ou seja, o povo, em nome de quem se fala, faz toda a diferença nos ‘julgamentos’ representados na obra cinematográfica.
É essa diferença que precisa ser levada em conta na abordagem e análise dos sombrios problemas ligados à segurança pública com que lidamos hoje. Trata-se de uma discussão envolvendo os conceitos de público e privado e de como estes se relacionam com a questão da legitimidade. E esta problemática se constitui como um capítulo próprio presente na história das instituições ocidentais modernas – em especial no que tange à conversão da autotutela em outorga desse poder individual a um mediador, julgador, pacificando e trazendo à coletividade os dilemas que envolvem a questão do conflito social e suas mediações. Importante, porém, termos em mente ao longo dessa reflexão que o monopólio do uso legítimo da força exercido pelo Estado e o próprio processo civilizador passam, de alguma maneira, por essa relação entre a outorga de poderes individuais ao ente coletivo – de onde decorre inevitável redução das liberdades do indivíduo – e a vinculação do exercício de poder do Estado à promoção do bem comum.
A questão da legitimidade, nesse ponto, é de fundamental importância, pois se trata justamente do que o autor do “Vampiro de Düsseldorf” assinalou com a frase de efeito verbalizada pelo magistrado: “Em nome do povo...”, ou seja, por quem se fala e sob quais condições. Independentemente do nome que se dê a esse fenômeno, seja contrato social ou qualquer outro, o fato é que uma relação de permanente tensão se estabelece entre o indivíduo e o Estado isto que essa troca de poderes e garantias se dá a partir do controle que as instituições devem promover dos procedimentos jurídicos legitimamente.
E é esse cenário que fornece elementos necessários à presente abordagem: o palco dessa tensão é a própria sociedade, mas é por meio do direito que ela se materializa legitimamente, mesmo que este jogo não se formule a partir de resultados esperados em uma equação de soma zero, mas sim concebido como princípio entrópico inerente ao próprio conceito de justiça.
Mas o que isso tem a ver com os tristes espetáculos de violência a que estamos expostos em nossa cidade? Muito, seria a resposta. O processo civilizador, conforme apresentado na seminal obra de Norbert Elias, levou muito tempo para conseguir desenvolver mecanismos que possibilitem a vida em sociedade a partir tanto da auto-regulação dos indivíduos quanto do controle legítimo da violência produzido pelos operadores do Estado – estes regulados por procedimentos e instituições concorrentes a fim de que nenhum poder atue de forma tirânica e discricionária.
Incontáveis vidas foram sacrificadas e injustiças cometidas para que, a passos lentos, os homens caminhassem para um estágio de desenvolvimento e civilização que ampliasse a segurança e permitisse o progresso. Longe estamos dos resultados almejados – pois este processo, como adverte Elias, é marcado não por uma teleologia, mas sim por movimentos de estagnação e retrocesso inerentes aos agenciamentos societários. Mas igualmente distantes estamos do estágio de barbárie de outrora. Não porque barbaridades deixem de acontecer nos dias de hoje – ao contrário, somos tristes e não raramente silenciosas testemunhas de que o terror, muitas vezes, bate à nossa porta – ou mesmo a põe abaixo com coturnos. Mas, sim, porque a barbaridade não ocorre sob o manto da legitimidade.
Historicamente, poderíamos destacar que a transferência da punição privada para a esfera pública foi um grande avanço nesse sentido. Evitar o talião, ou a justiça do ‘olho por olho’ executada pelo particular e colocar na mão do Estado, da coletividade, o deslinde de uma situação de impasse entre particulares, impasse esse que em sua forma mais grave incorre na violação de bens jurídicos caros aos indivíduos – e que por essa precisa razão tem sua ofensa criminalizada –, é indispensável para o conceito de civilidade que desenvolvemos.
Outros tantos avanços se seguiram nesse sentido para levar à coletividade a tutela e a administração da justiça no seio social, bem como garantir ao indivíduo a previsão e os limites do poder punitivo estatal. A Accademia dei Pugni, cujos expoentes são Cesare Beccaria Bonesara e Pietro Verri, deixou um legado de fundamental importância para estruturar essa concepção de garantia de justiça, por processo legal e punição.
O que se denunciou na reportagem de Mauro Ventura é a barbárie, sem sombra de dúvidas. Mas não é a barbárie institucionalizada. Não se pode, ou não se deve, esperar do criminoso a obediência aos princípios e valores de nossa sociedade, tampouco o respeito às leis. Mas é indispensável que o agente do Estado, aquele que “Fala em nome do povo...” atue com extrema e incondicional obediência às leis e aos princípios legalmente consagrados na sociedade. Se assim não o fizer põe em risco a legitimidade de seu ato, ou seja, age sem a outorga dos poderes individuais que constituem o próprio Estado. Por isso é falácia sustentar que a razão de um excesso policial pode ser a proteção e garantia da própria sociedade. Não é, e não pode ser. O ato contrário à lei praticado pelo agente do Estado no exercício de sua função não é ilícito como outro qualquer porque é mais grave do que aqueles que não minam a legitimidade da ação estatal. E porque abdicando dessa legitimidade, o ente público que viola a lei fragiliza o ordenamento e mitiga o próprio conceito de crime e criminoso.
Nesse sentido, como se sabe, não se trata de uma questão de mera indumentária. Criminosos vestem camiseta e chinelo, farda e roupa preta ou mesmo terno e gravata. Que um traficante julgue e execute uma pessoa, seja ela quem for, ‘rato de favela’, ‘X-9’, ‘alemão’ etc, é odioso e merece a repressão necessária dos órgãos de Estado incumbidos da manutenção da ordem, mas, a rigor, não calcamos nossa sociedade na expectativa de que ele agisse de outra forma.
Por outro lado, é justamente na certeza de que o agente do Estado está subordinado à lei que construímos os fundamentos da nossa civilização. Assim, do agente de Estado que age em nome do povo, a obediência aos ditames legais é algo indissociável. Na ponderação entre uma violação e outra é inegável que o crime praticado por um agente e Estado no exercício de sua função pública, em contraposição à barbaridade cometida pelo cidadão comum, mostra-se extremamente mais danoso à sociedade como um todo. A pergunta que deve ser feita, então, é: Quem está de que lado?.
Com efeito, a execução de um traficante, rendido, no alto do morro, por um ‘tribunal’ composto pelo braço armado do Estado que lá esteve, é de uma gravidade sem paralelos. Assim, o discurso dos que defendem a lógica maquiavélica de que os fins justificam os meios, ajudado ainda por uma estética que facilita a demonização daquele criminoso sem rosto, de chinelos, mas com um fuzil na mão, sofre de grave distorção avaliativa ou é imbuído de pura e simples má-fé. A violência produzida pelo tráfico de drogas – como pelas milícias – deve ser combatido com a força e peso da lei, estando os operadores legais, para isto, regulados pelos devidos procedimentos legítimos constituídos pelo estado de direito.
Não tergiversemos: o tráfico de drogas oprime os mais necessitados em nossa sociedade. Ele impõe o terror, a barbárie e a violência sem mensuração, justamente àquela camada da população que mais carece dos bens e serviços socialmente produzidos. Mas o tráfico, quando oprime e massacra, não o faz com outorga societal. Não o faz por intermédio da diminuta parcela de poder individual da qual cada um de nós dispôs em prol da criação do Estado. Esse sim, o Estado, quando sobe o morro e age lançando mão do monopólio do uso da violência do qual dispõe, o faz em meu, seu, nosso nome. Como diz Lang: “Em nome do povo...”, de todo o povo.
PS: “M” ficou conhecido no Brasil como “O vampiro de Düsseldorf”, mas foi uma opção inadequada, pois o filme é ambientado em Berlim – aliás, a cidade alemã mais resistente à ascensão no nacional-socialismo. O título original da obra de Lang foi “O inimigo está entre nós”. Contudo, a censura alemã impediu que ele assim fosse lançado. O argumento das autoridades foi o de que o impacto na sociedade seria o de disseminação do medo, suspeita e desconfiança. Porém, seu alvo foi outro: impedir que por meio do filme e da ambigüidade que nele está narrada, a sociedade alemã problematizasse justamente o ‘ovo da serpente’ – pensando aqui no também genial filme de Bergman – que nela estava incutido.
*Advogado – Delegado da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ
** Doutor em Ciências Sociais pela Uerj, professor do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio.
Publicado em 11/4/2008.