Ser traficante e ser mulher: convivendo com duas identidades (14/05/2008)
Hoje, a sociedade se depara, e tem que aprender a lidar, com situações que seriam impensáveis há meio século. A inversão de valores está cada vez mais nítida e profunda. Fomentado pelo grande número de mulheres envolvidas com a criminalidade e as conseqüências desse fato na estrutura familiar, o IV Ciclo de Debates Conversando sobre a Estratégia de Saúde da Família abordou o tema ‘Mulheres no tráfico’. O encontro contou com a presença das pesquisadoras do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Carelli (Claves/ENSP/Fiocruz) Patrícia Constantino e Mariana Barcinski, como palestrante e debatedora, respectivamente.Patrícia falou sobre a pesquisa que realizou no Educandário Santos Dumont com 27 meninas, de 12 a 18 anos, envolvidas com o tráfico de drogas. “Queríamos entender o que motiva as jovens a buscarem essa vida, já que essa atividade ainda é praticada principalmente pelo sexo masculino. A pesquisadora realizou um estudo qualitativo acompanhando as 27 meninas durante o período de um ano e, de acordo com ela, foi estabelecida uma relação de muita confiança com as jovens. O livro "Filhas do mundo: a infração juvenil feminina no Rio de Janeiro", escrito por Patrícia e Simone Gonçalvez, também do Claves, é o resultado de todo esse trabalho. “Não existe uma receita para que as meninas entrem no tráfico. Mas todas, sem exceção, apresentam uma história de vida marcada por violências em diversos aspectos. Segundo dados apresentado por Patrícia, 5.932 adolescentes cometeram infrações no ano de 2006. Destes, 83% são do sexo masculino e 17% do sexo feminino. Entre as meninas infratoras, 60% delas estão envolvidas com o tráfico de drogas. “Esse dado nos chocou muito. Pois é mais difícil para as mulheres romperem com o espaço privado, deixando de lado o seu papel de provedoras, de cuidadoras da família do que para os homens. Normalmente, é preciso que a vida tenha sido muito cruel para que elas façam isso”, relatou Patrícia. Além das 27 jovens, a pesquisadora entrevistou também dez mães desse grupo de meninas. “Nós tentamos entender mais profundamente as suas histórias, os caminhos que ‘escolheram’ e os reflexos disso na vida das meninas que hoje estão envolvidas com o tráfico. Vimos que muitas delas repetem o modelo vivido por suas mães. É um ciclo”, comentou Patrícia. Para a pesquisadora, entre os delitos, o mais lúdico é o tráfico: “Quando elas viram traficantes ganham respeito, poder e status na comunidade em que vivem. Mas a vida do crime não é a vida do ‘creme’. Para serem traficantes precisam se endurecer. Muitas meninas relatam que, no tráfico, não há espaço para crises de TPM, tristeza ou pena”. A debatedora Mariana Barcinski trouxe para a mesa a história de mulheres maiores de 18 anos que estão em processo de saída do sistema do tráfico. “Trabalhei com motivação e discurso. Procurei saber quem eram elas, o que as levou a entrar e o que as motivava a sair do tráfico. Além disso, busquei entender o que elas enxergavam sobre ser mulher e ser traficante e como elas negociavam essas duas identidades conflitantes”, apontou a pesquisadora. Mariana explicou que, normalmente, as mulheres ascendem no tráfico copiando o modelo tradicional de provedoras das famílias. “Elas alimentam os membros da boca de fumo e mantêm relações sexuais com os traficantes até chegarem ao poder”, disse ela.“O processo de entrada e saída nessa atividade está diretamente relacionado à maternidade. As mulheres entram no tráfico em busca de renda para suprir as necessidades básicas de seus filhos, querem proporcionar a eles uma vida mais digna. E a saída quase sempre acontece após uma experiência traumática. Quando a mulher sente medo de morrer e deixar seus filhos sozinhos no mundo”, analisou Mariana. Para a pesquisadora, a questão do gênero é muito forte e afirmou: “A mulher ainda é muito mal vista nesse tipo de atividade, tanto pelos parceiros amorosos quanto pela família, polícia e a sociedade em geral. Por isso precisam demonstrar constantemente sua capacidade na busca pela igualdade”. Patrícia Constantino encerrou o debate falando sobre o profissional de saúde e o seu papel como tutor de resiliência - capacidade que cada ser humano tem para enfrentar e superar as adversidades da vida. “É de extrema importância que os profissionais estejam atentos às pessoas que procuram os serviços de saúde, em especial as mulheres. O ideal é que os profissionais busquem estabelecer diálogos além do problema que levou o paciente a procurar este serviço. Além disso, as equipes de Saúde da Família estão mais próximas da realidade violenta e podem estimular a resiliência dentro das comunidades. Outro ponto importante é prestar atenção em como está a capacidade de resiliência dos próprios profissionais de saúde. Se não estivermos bem com nós mesmos não poderemos ajudar os outros”, concluiu Patrícia.
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