14/01/2008

RELATÓRIO DE EVENTO 4ª ONFERÊNCIA SOBRE REDUÇÃO DE DANOS ASSOCIADO AO CONSUMO DE DROGAS (CLT4)

PERÍODO: 29 de novembro a 1 de dezembro de 2007
LOCAL: Milão, Itália
RELATORA: Maristela de Melo Moraes
Síntese. A ABORDA participou do evento como organização parceira, com apoio da UNODC. Também realizou a comunicação oral intitulada “Reflexões sobre o Movimento Social de Redução de Danos: a experiência do Brasil", na mesa “Paciente ou Consumidor”, da qual participaram, além de Maristela Moraes (da ABORDA), representantes de associações de consumidores de drogas e profissionais de 05 países da Europa.
A ABORDA também participou de uma breve reunião de montagem de uma rede mundial de “Pacientes em Tratamentos”, organizada pela APDO (Asociación de Pacientes Dependientes a Opiáceos, de Barcelona), bem como de reuniões entre coordenação da ONG espanhola IGIA e brasileiros participantes da CLAT4, para pensar a possível realização de uma CLAT sul-americana.
A principal discussão política, que permeou toda a Conferência, foi a questão do recrudescimento dos moralismos e proibicionismos, bem como os retrocessos nas ações de RD já implantadas em vários países, principalmente da Europa.
A participação sul-americana na CLAT4 foi bastante tímida (não havia mais que 10 pessoas dessa região), tendo o Brasil se destacado com a participação de 04 pessoas, todas ministrando comunicações orais (Tarcísio Andrade, Maria Lúcia Karam, Andréa Domanico e Maristela Moraes). Além dessas, participou como organizadora e conferencista, a ilustre brasileira, naturalizada francesa, Lia Cavalcanti.
Ao longo de toda Conferência foram solicitadas contribuições dos participantes das mesas para construção do que foi chamado de Aliança Latina, documento com recomendações gerais para promoção da RD no âmbito das políticas públicas.
Contexto prévio.
Ainda antes da CLAT4 ser iniciada, a representante da ABORDA na Conferência visitou a sede da IGIA (organizadora da CLAT) em Barcelona, com o objetivo de estreitar as relações de parceria entre as duas organizações. Durante a visita discutiu-se sobre o futuro da RD, na Europa e na América do Sul, destacando-se a necessidade de unir esforços e atuar em rede para ajudar a superar uma “apatia mundial” que se aparentemente se instala em relação à RD, bem como superar o retorno dos moralismos. Para tanto, estratégias fortalecedoras, como diálogo mais estreito com as Universidades, começam a ser mais valorizadas na Europa, sendo a experiência brasileira uma referência nesse sentido. A Universidade do Porto, em Portugal, por exemplo, está iniciando um programa de formação em RD, dentro da estrutura acadêmica. Vale lembrar que a próxima CLAT acontecerá em Porto, também como uma forma de fortalecer e divulgar tal experiência.
Durante reunião com o coordenador da IGIA, Miguel de Andrés, o mesmo destacou a importância da ABORDA para o cenário mundial da RD, como exemplo de organização que tem conseguido articular pessoas de todo um país de dimensões continentais, mantendo uma nível de contribuição para as reflexões e práticas de RD singular.
Estrutura da CLAT4. Os três dias de evento forma distribuídos da seguinte forma:
1º dia – Conferências, iniciando pela manhã com provocações de Pat O´Hare e debates sobre a fala de Pat por 05 especialistas europeus, e à tarde palestrantes italianos focando a experiência da Itália;
2º dia – Sessões Coordenadas, divididas em salas temáticas (três por turno), a saber: 1. Paciente ou Consumidor, 2. Diversificação de cenários e intervenções; 3. Implementação de Políticas e de Serviços (manhã e grande parte da tarde); 4. Políticas sobre drogas e do Estado de direito, 5. Projetos, espaços e serviços, 6. Cidades como uma área de intervenção. (parte da tarde e início da noite);
3º dia – Conferências, encerramento com autoridades e manifestações de movimentos sociais italianos, contra os retrocessos das políticas atuais e em busca de uma nova política sobre drogas. Ao final do encontro, realizou também uma festa de encerramento.
Principais discussões. As principais discussões realizadas na Conferência mesclaram preocupações específicas com a situação da Itália (especialmente a necessidade de garantia de direitos básicos, como acesso à metadona para pessoas em tratamento e RD como política pública), bem como com o retrocesso que toda Europa está passando em relação às políticas de drogas e a necessidade de discutir os conceitos e práticas da RD.
Alguns destaques:
Pet O´Hare destacou a necessidade de focarmos as estratégias práticas de RD, e ampliá-las, reinventá-las, tendo em vista que, segundo ele, perdemos tempo demais discutindo o que é Redução de Danos. Sugeriu que as discussões sobre RD estivessem sempre pautadas nas convenções dos Direitos Humanos.
Jean Savary, da Suíça, falou da RD como um processo de integração social, que pode auxiliar nessa passagem do que ele chama de “saída de um paradigma de guerra às drogas para um de guerra aos drogadictos”.
Como contraponto ao que discutia O´Hare, Ricardo de Facci, da Itália, historiou como a RD nasce das equipes de rua, da “cultura da solidariedade”, do incentivo ao protagonismo individual e coletivo, e como esses elementos vêm sendo perdidos. “É necessário proteger a RD”, dizia ele, e que não se trata de somente utilizar ferramentas, mas de compreender a redução de danos como filosofia.
Discutiu-se ainda, ao longo de toda a Conferência, sobre a necessidade de “redefinir” o que é a Redução de Danos enquanto filosofia e prática, pois já não é possível continuar discutindo as mesmas coisas por 20 anos.
Muito se falou também do quanto a “guerra às drogas” tem causados danos ao mundo todo e, nas palavras de Alain Labrousse, da França, “os EUA deveriam ser julgados pelas consequências da guerra às drogas” e que as lutas contra drogas e terrorismo escondem outros interesses econômicos, mas que grande parte do mundo, inclusive a Europa, não está disposta a se contrapor aos EUA.
Ambros Uchtenhagen, da Suíça, destacou que uma política aplicada de maneira democrática faz consulta à população, citando o exemplo da França que fez referendo público sobre a política de prescrição de heroína. Segundo ele, essa consulta à população, se bem realizada, ajuda a criar uma maior aceitação das políticas, mesmo daquelas mais polêmicas. Por outro lado, destacou a necessidade de garantia de recursos para dar continuidade às ações, citando também a desastrosa experiência da França, que recentemente reduziu significativamente o orçamento da saúde. (Essa reflexão nos faz pensar nos caminhos que a RD no SUS vêm tomando no Brasil, sendo necessário garantir a continuidade do que for pactuado no Plano Nacional de RD).
Outra fala importante, que nos faz refletir sobre as semelhanças e diferenças entre as experiências européia e brasileira, diz respeito à necessidade de relatar, sistematizar e divulgar os relatos de êxitos em relação à RD, para criar legitimidade do discurso e credibilidade em relação ao caminho escolhido, especialmente em relação ao tratamento (Maria Caiata Zufferey).
Don Luigi Ciotti, da Itália, numa fala emocionada e emocionante, destacou que não se pode falar em adesão a qualquer tratamento se as pessoas não tiverem condições mínimas de sobrevivência. Ele chamava atenção para a necessidade de eliminar das ações públicas a palavra “emergência” e operar no registro das ações continuadas e constantes. É preciso, segundo ele, pensar menos em solidariedade e mais em direitos. A vida das pessoas deve ser a base para as leis, em não o contrário.
Tarcísio Andrade apresentou a experiência do Brasil, destacando o modelo do SUS e o funcionamento de PRD dentro da universidade. (Foi visível que a experiência do Brasil é bastante vanguardista e que avançamos muito mais do que imaginamos, quando não conhecemos experiências de outros países que aparentemente estão mais desenvolvidos em termos de políticas públicas).
Também foram debatidos os seguintes temas: a necessidade dos movimentos sociais intervirem na reunião de Viena (março de 2008); a importância de se ter a RD juridicamente protegida, para não ocorrer como no Canadá que recentemente abandonou a RD, que era apenas um Plano, mas não estava na Lei; a necessidade da mídia pautar a RD; a importância da participação popular para a eficácia das políticas publicas; a necessidade de priorizar a saúde pública, e não mais o direito ao uso, uma vez que “esse debate já está superado e não se penaliza mais as pessoas pelo uso” (foi o que disse o Ministro da Saúde da Itália, sob vais e manifestações contrárias dos representantes de várias redes e associações de usuários); da necessidade de se ampliar as ações de RD no sistema prisional, em todo o mundo, e por fim, da necessidade de se chamar as polícias para o diálogo com os “operadores” da redução de danos.
Em relação aos debates na Sessão Coordenada Pacientes ou Consumidores, além do trabalho sobre a experiência do movimento social de RD no Brasil, foram apresentadas as experiências da França, Espanha, Portugal e Itália. Grande parte das discussões sobre direitos estavam centralizadas no acesso ao tratamento com metadona e sobre as salas de uso seguro. Alessandra, do Cannabis Social Club, apresentou um sistema de inalação que vem sendo utilizado para tratamento e falou das dificuldades que a Itália vem passando, inclusive para aprovação das salas de uso, que já estavam regulamentadas, mas o novo governo voltou a vetar.
A principal mensagem da mesa foi: sem organização das pessoas que usam drogas, é impossível avanças nas políticas públicas sobre drogas. Em Portugal, por exemplo, não há associação de consumidores de drogas e em outros países há dificuldade de articulação em função dos governos desarticuladores dos movimentos sociais, como é o caso atual da França, como avaliam os participantes da plenária da Sessão Coordenada.
Em relação à experiência brasileira, houve dificuldade de compreensão, por parte da platéia, sobre o SUS e o direito universal e equânime à saúde. Avaliou-se que o Brasil avançou bastante em relação às políticas públicas de saúde, mas pouco em relação às questões morais e jurídicas penalizantes em relação ao consumo de drogas ilícitas.
Na sessão de pôsteres, destacaram-se os relatos de experiências sobre serviços, como por exemplo, o Centro de Encuentro y Acogida, semelhante aos centros de convivências do Brasil (ver www.fsys.org).
Considerações Finais. Foi de extrema importância a participação da ABORDA na CLAT4, não só para o compartilhamento das experiências européia e brasileira, mas sobretudo para perceber como avançamos em relação ao direito à saúde, especialmente à saúde mental. A compreensão da pessoa que usa droga como cidadã (não como doente, paciente ou consumidor) também se destaca nesse cenário internacional, assim como o diálogo que temos com os vários níveis de governo, nos vários setores.
Além disso, ficou muito clara a importância dos movimentos sociais para que se consiga avançar no sentido de uma política de drogas que considere as complexidades das várias formas de uso, das necessidades das pessoas que buscam tratamento, das questões econômicas e morais envolvidas, enfim, dos seres humanos e seus contextos que envolvem o uso de drogas.
Por fim, ficou também evidente a necessidade de nos organizarmos para incidir politicamente na reunião de Viena (março de 2008), especialmente nesse momento em que são visíveis os retrocessos das políticas mais vanguardistas e o retorno de conservadorismo, moralismos e proibicionismos que muitos países achavam que haviam superado.