Justiça, não esmola
Quadro ¿Locos en el manicomio?Francisco de Goya Lucientes
Austregésilo Carrano Bueno é escritor, ator e diretor de teatro. Escreveu o livro “Canto dos Malditos”, que deu origem ao filme “Bicho de Sete Cabeças” (dirigido por Laís Bodanzky) e conta a história da sua época como paciente psiquiátrico – uma história que a própria Rets já mostrou. Desde o fim desse pesadelo, que lhe rendeu um processo movido pelos médicos da clínica onde esteve internado, Carrano se empenha na defesa da reforma psiquiátrica. Às vésperas de mais um 18 de maio, quando se comemora o Dia Nacional de Luta Antimanicomial, voltamos a procurá-lo para conversar a respeito da situação do atendimento às pessoas com transtornos mentais no país.
Sobre o programa De Volta para Casa, criado pela Lei 10.708, de 31 de julho de 2003, para dar “assistência, acompanhamento e integração social, fora da unidade hospitalar, a pessoas acometidas de transtornos mentais com história de longa internação psiquiátrica”, Carrano não poupa críticas. ”Em 2005, o programa tinha como objetivo atingir mais de 2.500 pessoas. Conseguiram repassar esta verba para pouco mais de 800. Isto porque é muito burocrático, exigente demais. Exige, por exemplo, que o usuário tenha sido internado no mínimo por dois anos ininterruptos. Isto é um absurdo!”, reage.
Integrante do Movimento de Luta Antimanicomial, o escritor reconhece algumas conquistas, mas lamenta que batalhas como o combate aos eletrochoques – a Terapia do Terror, como prefere chamar – ainda não tenham sido vencidas. “Esta falsa psiquiatria que chamam de moderna matou mais de 300 mil pessoas e inutilizou, destruindo a saúde mental, número semelhante. São mais de 600 mil vítimas psiquiátricas somente no Brasil”, indigna-se.
Para elas, Carrano defende uma análise de cada caso por uma junta gratuita de advogados e o pagamento de indenizações. “Isto é fazer justiça social, ao contrário das esmolas sociais”, afirma.
Rets - O programa De Volta para Casa, lançado em 2003 pelo governo federal, foi bastante comemorado como uma iniciativa de reinserção das pessoas com transtornos mentais nas suas famílias. Você tem acompanhado a execução do programa? Como avalia?
Austregésilo Carrano - Em 2005, o programa tinha como objetivo atingir mais de 2.500 pessoas. Conseguiram repassar esta verba para pouco mais de 800. Isto porque é muito burocrático, exigente demais. Exige, por exemplo, que o usuário (paciente) tenha sido internado no mínimo por dois anos ininterruptos. Isto é um absurdo!
No meu caso, foram três anos e cinco meses de entra-e-sai em chiqueiros psiquiátricos. Eu, como milhares de outros, não teria o direito ao auxílio mínimo do programa De Volta para Casa. Nós, usuários e não-usuários que fomos violentados dentro dessas casas de extermínio, exigimos os mesmos direitos constitucionais que receberam os presos políticos na época da ditadura militar. Foram indenizados, e muito bem. Agora, para nós, vítimas psiquiátricas, e muitas em conluio com a ditadura militar, jogam um salarinho de fome e acham que a "dívida social" para conosco está saldada. Uma ova! Costumo citar o meu caso como exemplo de como esta experiência como cobaia psiquiátrica interferiu em minha vida.
Minha formação profissional foi anulada de forma estúpida por um erro médico-psiquiátrico. Três anos e meio de minha adolescência e de meu preparo profissional prejudicados. As seqüelas físicas e emocionais que abalam toda uma formação de comportamento, temperamento e efeitos em ações tomadas. Os preconceitos sociais enfrentados dia a dia, quando tomam conhecimento de seu histórico psiquiátrico, o que muitas vezes gera medo nas pessoas. Tudo somado leva ao preconceito agressivo, tanto físico como moral. Existem, assim, grandes chances de esses sobreviventes psiquiátricos serem levados ao isolamento social, ou seja, a uma destruição total do seu processo de reinserção, caso não tenha ajuda profissional como a que nós damos na Rede de Trabalhos Substitutivos aos Hospitais Psiquiátricos Brasileiros. É por esses e outros danos que exigimos que nossos casos sejam analisados gratuitamente por uma junta de advogados. Os que forem julgados merecedores de indenizações, que tenham integralmente respeitados seus direitos constitucionais e sejam indenizados. Isto é fazer justiça social, ao contrário das esmolas sociais.
Rets - A integração da pessoa com transtorno mental à vida familiar e social é um dos pontos da luta antimanicomial, certo? Quais outros pontos você considera importantes e que deveriam ser prioridade?
Austregésilo Carrano - Perdemos algumas batalhas, como nossa luta pela proibição do eletrochoque, da eletroconvulsoterapia - ou ECT, como chamam esta Terapia do Terror. Na Europa, foi proibida. Nos estados norte-americanos que utilizam ainda esta arcaica e criminosa terapia, existem leis rigorosas de indenizações e até prisão do profissional pelos danos causados. Associações internacionais de sobreviventes da eletroconvulsoterapia lutam há anos pela proibição mundial dessa famigerada terapia. E aqui se faz campanha pela utilização do eletrochoque, alegam que os medicamentos não atingiram o esperado e retornam simplesmente a métodos antiquados e proibidos em muitos outros países mais evoluídos nesta coisa chamada de Psiquiatria. Omitem em seus artigos quais os medicamentos que foram utilizados, os que o governo doa gratuitamente ou as medicações consideradas de última geração, que custam uma pequena fortuna. Se for culpa dos medicamentos, isto é crime contra a sociedade, que está sendo enganada e roubada na compra desses medicamentos.
Quanto ao perigo do suicídio, existem técnicas, métodos, jeitinhos da sensibilidade humana, menos agressivos e cruéis, para tirar um usuário desse sintoma. Além disso, querem receber do Sistema Único de Saúde (SUS) R$ 400 por aplicação de eletroconvulsoterapia. Dez chifres queimados em uma hora são R$ 4 mil reais na conta, e mais uma teta enorme para se mamar do Ministério da Saúde. Como gostam de mamar esses meninos e meninas mestres do inconsciente, inconfundível, inalienável, do imaginável! É a terceira maior despesa dos SUS. Até os anos 90, era a primeira, com mais de U$ 1 bilhão por ano. Mama, neném, a fonte continua aberta, é só ter jeitinho!
Rets - Como tem avançado a questão das indenizações aos pacientes tratados com eletrochoques?
Austregésilo Carrano - Indenizações são para todos que foram torturados, aviltados e currados em seus direitos constitucionais de cidadãos, e não somente por quem já foi violentado por esta Terapia da Morte. Esta falsa psiquiatria que chamam de moderna há mais de 60 anos matou, somente no Brasil, mais de 300 mil pessoas e inutilizou, destruindo a saúde mental, número semelhante. São mais de 600 mil vítimas psiquiátricas somente no Brasil. Segundo dados da Comissão Internacional dos Cidadãos para os Direitos Humanos, as mortes causadas no mundo são em torno de 17 mil vítimas psiquiátricas em toda a sua história de terror.
Rets - Com relação ao processo jurídico contra você, em que pé está a questão agora? Você já está podendo falar o nome do médico que cuidou do seu caso?
Austregésilo Carrano - Estou com penhora de bens pelas condenações por supostas injúrias e calúnias contra os “médicos-mengeles” da psiquiatria. A corda da nossa Justiça ainda continua beneficiando o lado mais ditador e corrupto dos que têm poder econômico no Brasil. Dentro do histórico forense brasileiro, com mais de 600 mil vítimas entre mortos e sobreviventes, não existe nenhuma condenação ou indenização por erros, abusos, torturas e crimes psiquiátricos. Isto só pode significar que existe conivência e conluio judicial neste assunto. Imaginem se meu caso tivesse sido indenizado, o precedente jurídico que abriria para outros vitimados da psiquiatria também exigissem seus direitos constitucionais, o que lhes daria o direito de serem indenizados... Quantas fortunas psiquiátricas passadas de pai para filhos ruiriam... Lembrando uma frase de Mel Brooks: "Se fatura muito, mas muito mais, na psiquiatria que no rock and roll”.
Maria Eduarda Mattar. Colaborou Fausto Rêgo.