14/06/2008

VIOLENCIA CONTRA CIANÇAS E ADOLESCENTES

Bruno Dominguez
Dois casos recentes com representantes da classe média trouxeram à luz do dia uma realidade geralmente encoberta: a violência contra a criança. Em março, uma empresária de Goiânia foi presa em flagrante por torturar uma menina de 12 anos. Em abril, a garotinha Isabella Nardoni, de 5 anos, foi enforcada pela madrasta e arremessada pelo pai do sexto andar de um prédio em São Paulo, segundo afirma a polícia. Maus-tratos na infância e na adolescência são comuns no Brasil — e no resto do mundo. Acidentes — que na maioria das vezes significa negligência — e violência responderam por 21,11% das mortes de crianças entre 1 e 6 anos de 1996 a 2003, de acordo com dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde.
Para a médica-sanitarista Marta Maria Alves da Silva, coordenadora da Área Técnica de Vigilância e Prevenção de Violências e Acidentes do Ministério da Saúde, a repercussão em torno do assassinato de Isabella indicaria que maus-tratos a crianças estão deixando de ser encarados como fato normal.
Mas apenas em parte. O principal elemento por trás da revolta da população, acredita Marta, é a identificação com os envolvidos — uma família de cor branca, de classe média e instruída. “Em abril, uma menina de 9 anos, pobre e negra, foi estuprada e assassinada no interior de Goiás sem que houvesse qualquer repercussão na grande mídia”, compara. Há um “verdadeiro extermínio” de crianças negras no Brasil que “fica por isso mesmo”.
O silêncio de parentes, amigos, vizinhos e profissionais de saúde que desconfiam das agressões contribui para a ocorrência de novos casos. Por isso, notificar suspeita de violência é dever de todo profissional de saúde — do pediatra no ambulatório, do clínico no pronto-socorro, de enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, dentistas. O Artigo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente, no capítulo que trata do direito à saúde, estabelece: “Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais”.
SILÊNCIO E NEGLIGêNCIA
Ainda assim, muitos têm receio de fazer a notificação. Entre as causas, medo de retaliação, da eventual convocação para testemunhar em processo criminal, desconhecimento da legislação. “Mas o profissional que atende uma criança vítima de maus-tratos e não denuncia também está violentando a criança, por negligência”, sustenta Marta. Uma criança que passa várias vezes pelos serviços de saúde sem nenhuma denúncia dos profissionais pode não voltar com vida, adverte. “A tendência é que o grau de violência aumente”.
Marta reconhece que boa parte dos profissionais de saúde nem têm formação adequada para identificar casos de maus-tratos, especialmente os que não deixam marcas físicas evidentes — embora as seqüelas psicológicas sejam quase sempre graves. Atualmente, 500 pessoas das áreas de saúde, educação, assistência social e segurança pública dos serviços estaduais de saúde estão sendo treinadas em violência pelo Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Carelli (Claves/Ensp/Fiocruz), num curso financiado pelo Ministério da Saúde. Em julho será aberta uma nova turma.
Lançado em 2001, o Guia de atuação frente a maus-tratos na infância e na adolescência orienta detalhadamente pediatras e outros profissionais que trabalham com crianças e adolescentes. A publicação, organizada pela Sociedade Brasileira de Pediatria e pelos ministérios da Saúde (por meio do Claves) e da Justiça (via Secretaria de Estado dos Direitos Humanos), está disponível para download no site www.ensp.fiocruz.br/biblioteca/dados/MausTratos_SBP.pdf.
O guia, muito minucioso, orienta o profissional na definição de maus-tratos: primeiro, os físicos, que supõem uso de força intencional, deixando ou não marcas evidentes — a “síndrome do bebê sacudido”, que provoca lesões cerebrais, é um exemplo, enquanto a síndrome da criança espancada aponta ferimentos inusitados, fraturas, queimaduras; em seguida, a Síndrome de Munchausen por procuração, quando a criança é levada ao hospital devido a sintomas, inventados ou provocados pelos responsáveis, que pressupõem violência física (como a ingestão forçada de remédios) e psicológica (internações constantes, por exemplo).
Terceiro, o abuso sexual: é todo ato ou jogo erótico imposto à criança ou ao adolescente pela violência física, por ameaças ou indução de sua vontade, variando do voyeurismo à exploração sexual; depois, os maus-tratos psicológicos: toda forma de rejeição, depreciação, discriminação, desrespeito, cobrança ou punição exagerada, em que o adulto usa a criança para atender às próprias necessidades psíquicas — é difícil de identificar, avisa o guia; por fim, a negligência, que vai da omissão no provimento de cuidados básicos até sua forma extrema, o abandono, também de identificação complexa dada a pobreza de boa parte da população — o que não elimina a necessidade de proteção da criança e do adolescente.
Na entrevista inicial, recomenda o guia, deve-se avaliar se a lesão é compatível com a história descrita pelos pais e com o estágio de desenvolvimento da criança. “Um profissional treinado começa a suspeitar de violência intrafamiliar quando percebe que a fratura de um braço não poderia ter sido causada por uma queda de bicicleta, como alega a mãe”, exemplifica Marta. Relatos discordantes, acidentes recorrentes, busca tardia de socorro e sinais de alcoolismo e uso de drogas precisam ser atentamente observados.
Hematomas, lacerações e arranhões são as lesões de pele mais comuns nesses casos. É preciso observar se há marcas em diferentes estágios de evolução, se têm formato de objetos, como cintos, fios, garfos, cigarros, dentes. “Impressas” na pele da criança, indicam que as lesões foram provocadas. Também as fraturas causadas por maus-tratos apresentam características próprias: costumam ser nas extremidades. Já os maus-tratos psicológicos são mais difíceis de se detectar por não haver um quadro clínico específico. As crianças podem desenvolver distúrbios do crescimento, do controle de esfíncteres, de comportamento (agressividade, passividade, hiperatividade), baixa auto-estima, depressão.
CADA CASO É UM CASO
O guia faz uma ressalva: a existência de sinais e sintomas relacionados à violência não é suficiente para afirmar que a criança seja vítima de maus-tratos. “Faz-se necessário, portanto, contextualizar cada situação que se apresenta”, recomenda o texto. Mas, quando o profissional suspeita, deve registrar os indícios verificados no prontuário do paciente e preencher a ficha de notificação compulsória — desde 2006 há um formulário único para denúncias de violência doméstica e sexual (para crianças, adolescentes, adultos e idosos), que alimenta com informações o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (Viva). A denúncia segue para o Conselho Tutelar, ao qual cabe acionar a rede de proteção da criança, investigar e acompanhar o caso.
“A notificação não visa somente a punição, restrita às situações mais graves, mas também a educação dos pais”, observa a sanitarista Simone Gonçalves de Assis, coordenadora-executiva do Claves e uma das autoras do guia.
A violência contra crianças e adolescentes é histórica e cultural, lembra a pesquisadora: “Muitos pais ainda pensam que faz parte do processo de educação, vide expressões como é ‘de pequeno que se torce o pepino’”. Das notificações de maus-tratos na infância feitas entre agosto de 2006 e julho de 2007, constam como principal agressor o pai ou a mãe. Em segundo lugar, um conhecido da família; em terceiro, um desconhecido. “Esse dado desfaz o senso comum de que o perigo mora fora de casa”, atesta Marta.
Muitas vezes, as crianças submetidas a maus-tratos nem chegam ao serviço de saúde, destaca a médica; portanto, vizinhos e amigos que desconfiam de violência devem denunciar. Há um Disque-Denúncia para o combate à violência e ao abuso sexual contra crianças e adolescentes — o número é 100. A empresária que torturava uma adolescente em Goiânia somente foi presa porque um vizinho percebeu sinais de agressão na garota e resolveu denunciar. “Muitas pessoas ouvem crianças chorando e se omitem por julgar que não devem meter a colher”, critica Marta.
Mas devem. A denúncia é fundamental para a quebra precoce do ciclo da violência, de forma a evitar traumas futuros e a morte, adverte a pesquisadora. “A violência é prevenível e evitável, mas não tem vacina”.