Por Que Dizer Não à Rodada de Doha da OMC
Apesar de sucessivos fracassos, alguns governos, especialmente o do Brasil, continuam insistindo em tentar concluir as negociações da Rodada de Doha da OMC (Organização Mundial do Comércio), e até o final de junho pretendem fechar os acordos provavelmente realizando uma pequena reunião ministerial que decidirá sobre o destino das perspectivas de desenvolvimento de todos os países. Desde a sua criação em 1995, o objetivo da OMC é a crescente liberalização do comércio agrícola, de serviços, de investimentos, beneficiando assim as grandes corporações que visam expandir seus lucros no mundo, e para isso precisam de um ambiente livre de regulações, de leis nacionais e de políticas públicas. As grandes corporações sempre foram as maiores beneficiadas pelas regras da OMC, que removem os mecanismos que consideram discriminatórios adotados por alguns países para defenderem sua indústria e sua agricultura.
Neste momento, as negociações estão pautadas em barganhas entre estes dois setores. De um lado observa-se a pressão da Europa e dos Estados Unidos para que os chamados países em desenvolvimento abram ainda mais seus mercados para a importação de produtos industrializados, através de uma drástica redução de tarifas que na prática inviabilizaria a adoção de políticas industriais e eliminaria a possibilidade de manutenção de tarifas externas comuns em blocos regionais como o Mercosul. De outro lado há a demanda de países exportadores agrícolas, liderados pelo Brasil, pela ampliação do acesso ao mercado da Europa e Estados Unidos para suas exportações. Ao buscar a crescente liberalização do comércio agrícola internacional, as negociações tendem a expor a produção familiar e camponesa - responsável, no caso brasileiro, por cerca de 70% dos alimentos consumidos no país - a uma concorrência desigual com as transnacionais de alimentos e com o grande agronegócio exportador. Por este motivo a REBRIP – Rede Brasileira Pela Integração dos Povos - demanda que o Governo Brasileiro pare de negociar nestes termos. Não haverá um mercado socialmente justo se a Rodada de Doha for concluída em prejuízo dos setores produtivos mais vulneráveis. Os desequilíbrios e assimetrias resultantes deste acordo levariam o Brasil e muitos outros países do Sul à desindustrialização, a uma ainda maior falta de segurança e soberania alimentar, ao avanço dos monocultivos voltados a exportação, a um aprofundamento da privatização de serviços, à perda de empregos e limitações para o atendimento na prestação de serviços à população.
Agricultura
A última versão de texto sobre agricultura visando uma tentativa de acordo gerou muita insatisfação e até indignação por parte de diversos países do Sul. Não houve nenhum movimento significativo por parte da Europa e dos Estados Unidos no sentido de reduzirem os subsídios domésticos efetivamente praticados que tanto distorcem o comércio agrícola internacional e desestimulam a produção nos países do Sul. No caso dos Estados Unidos, inclusive, a nova lei agrícola que está sendo aprovada amplia a concessão de subsídios aos agricultores daquele país; esta atitude por parte de um dos principais países negociadores podem agravar ainda mais as contradições existentes no atual processo negociador. O caso do milho no México é emblemático de como o chamado livre comércio pode destruir uma produção alimentar tão fundamental para um país. A nação que domesticou o milho sempre teve uma grande diversidade de sementes que abastecia uma vasta produção doméstica que era a base alimentar dos mexicanos. Com a entrada em vigor do NAFTA (Acordo de Livre Comércio da América do Norte, entre Estados Unidos, México e Canadá), a produção de milho altamente subsidiada dos Estados Unidos e concentrada em grandes produtores passou a inundar o mercado mexicano, tornando inviável aos produtores domésticos seguir competindo e jogando milhões de famílias de camponeses mexicanos na miséria. Este modelo de liberalização e desregulamentação defendida pela OMC tem tudo a ver com a atual crise global de alimentos, que só poderá ser enfrentada se os países tiverem espaço para formular e aplicar políticas públicas voltadas a garantia da segurança e soberania alimentar, apoiando a produção familiar e camponesa destinada a abastecer o mercado doméstico de alimentos.
Ao mesmo tempo em que o texto atual não apresenta nenhuma proposta substantiva de alteração deste estado de coisas nos países do Norte, também mantém indefinidos os instrumentos que poderiam atender as necessidades dos países do Sul que desejam defender sua agricultura da concorrência externa das grandes corporações. Os mecanismos de salvaguardas que poderiam em tese resguardar a agricultura familiar e camponesa da importação indiscriminada estão enfrentando fortes pressões visando o seu enfraquecimento no texto, e têm sido considerados absolutamente insuficientes e inaceitáveis, a ponto do G33 (coalizão de países que defendem o tratamento especial e diferenciado para a agricultura familiar e camponesa) demandar a elaboração de um novo texto de negociação. Infelizmente o Governo Brasileiro, ao priorizar os interesses do agronegócio nas negociações, coloca em plano secundário a defesa dos interesses da agricultura familiar e camponesa.Os impactos ambientais das negociações
Esta dinâmica das negociações estimula o aprofundamento de um modelo baseado na exportação de produtos agrícolas primários, de baixo valor agregado, que exigem o uso intensivo de energia, de água e de insumos químicos na sua produção e de vastas extensões de terras para a pecuária e os monocultivos, que aumentam a concentração fundiária e os desmatamentos, e empobrecem a biodiversidade e a agrobiodiversidade. A pauta de exportações brasileira é concentrada em produtos como carne bovina, aves, suínos, soja, cana-de-açúcar, celulose, cujos impactos sócio-ambientais são negativos. A recente corrida para a produção de agrocombustíveis e o interesse do Governo Brasileiro em liderar esta corrida, especialmente a do etanol a partir da cana-de-açúcar, pode vir a aprofundar ainda mais estes problemas, expandindo os monocultivos em larga escala, deslocando outras produções para áreas ecologicamente importantes, desestimulando a produção de alimentos, e favorecendo a exploração degradante das condições de trabalho no setor sucroalcoleiro.
NAMA - Acesso a Mercados para Produtos Não-Agrícolas
As negociações em curso sobre NAMA (sigla em inglês para Acesso a Mercados para Produtos Não-Agrícolas) também podem resultar em graves impactos sócio-ambientais. Estas negociações incluem barganhas para a liberalização de produtos florestais como madeiras e minérios, além do setor de pesca e oceanos, visando o corte de tarifas, adiminuição ou eliminação de regulações e políticas públicas nacionais. O impacto deste acordo sobre a biodiversidade e sobre as políticas, a legislação, e os programas de defesa do ambiente são previsíveis.O foco atual das negociações sobre NAMA está no tamanho do corte das tarifas de importação de produtos industriais. Os países do Norte passaram muitos anos adotando tarifas altas para estimular o desenvolvimento industrial, e agora que alcançaram um alto nível de desenvolvimento tecnológico e dominam os mercados mundiais estes países pressionam na OMC para que os chamados países em desenvolvimento não tenham o mesmo direito. Ainda que as propostas em negociação suponham que Europa e Estados Unidos façam algum corte em suas tarifas (há propostas de coeficientes de cortes distintos para países do Norte e do Sul), as demandas de redução tarifária para os países do Sul são proporcionalmente muito mais drásticas. Por este motivo, assim como no caso do texto de agricultura, países do Sul (reunidos no grupo conhecido como NAMA-11) estão considerando inaceitáveis os termos desta negociação e estão exigindo uma completa revisão do texto. Dentro do NAMA-11 existem países como o México que, por terem suas economias já abertas ao extremo ao capital internacional, estão mais propensos a aceitar negociar, enfraquecendo assim a capacidade de negociação dos chamados países em desenvolvimento. A Índia inclusive afirmou que a iniciativa dos países desenvolvidos visava dividir o NAMA-11.
No caso do Mercosul, entre 3.500 e 5.000 linhas tarifárias da Tarifa Externa Comum seriam perfuradas dependendo do coeficiente de corte adotado pelos negociadores de NAMA, que inclui coeficientes de cortes e listas de flexibilidades, tornando inviável que os países do bloco mercosulino possam dar preferência a intercâmbios comerciais entre seus membros e estimular uma política industrial comum na região, o que seria considerado prática discriminatória pelas premissas da OMC.
Um outro mundo é possível
A OMC foi criada durante um período - os anos 90 - em que as teses do neoliberalismo eram hegemônicas no debate econômico e político. O Consenso de Washington pregava a máxima abertura comercial, ampla desregulamentação financeira e redução do papel do Estado. Hoje os termos do debate mudaram. Especialmente na América do Sul, estas políticas promoveram um tamanho aprofundamento da pobreza e desigualdades que logo a resistência começou a emergir. Assim nasceram a Aliança Social Continental, a Campanha Contra a ALCA, o Fórum Social Mundial, as estratégias de descarrilhamento de reuniões ministeriais da OMC, e a eleição de um ciclo de novos governos identificados com as demandas populares por mudanças de paradigmas e pelo distanciamento das teses neoliberais. Por isso não podemos aceitar que a Rodada de Doha seja concluída nas bases propostas, pois isto significaria um retrocesso em relação às conquistas obtidas em nossas lutas de resistência. Significaria um distanciamento do Brasil da construção de alianças estratégicas com países como Argentina e Índia que têm tentado resistir no processo negociador da OMC. Também significaria um bloqueio ao processo de integração regional em curso, pois este requer preferências e prioridades para o desenvolvimento para dentro de nossa região, ao invés de destinarmos nossas estruturas produtivas à exportação para os países do Norte. Por estes motivos, dizemos Não a Rodada de Doha da OMC e conclamamos a sociedade brasileira a debater e resistir