27/01/2009

GUERRA E FOME

26 de janeiro de 2009
Guerra e fome
José Graziano da Silva
Gaza é o exemplo mais recente e destacado pela mídia de como a ação humana pode trazer graves riscos para a segurança alimentar, mas não é o único.
Quando a FAO foi criada em 1946 acreditava-se que a conjunção dos fatores paz e alimentos em abundância poderia garantir a segurança alimentar. Assim, terminada a Segunda Guerra Mundial, a organização nascia para fomentar a produção agrícola e garantir a segurança alimentar de todos.
Não por acaso, em 1949, o primeiro diretor-geral da FAO, John Boyd Orr, recebeu o Prêmio Nobel da Paz. O reconhecimento da relação entre paz e disponibilidade de alimentos foi reforçado em 1970, quando o agrônomo Norman Borlaug, propulsor da Revolução Verde, também foi agraciado com o Nobel da Paz.
No entanto, a fome persiste. A FAO estima que no final de 2008 havia cerca de 963 milhões de subnutridos no mundo. Nunca antes foram tantas pessoas alimentando-se inadequadamente.
Em outra tendência preocupante, constata-se que o número de países em situação de emergência alimentar vem crescendo. Entre 1984 e 1997 nunca se registrou mais de 40 em um único ano. Desde 1998 sempre foram mais de 40.
Os dados da FAO mostram que a ação humana é, cada vez mais, a explicação para as emergências alimentares. Nos anos 80, era responsável por, em média, por menos de 10 emergências anuais, enquanto aquelas causadas por catástrofes naturais quase sempre superavam 30. Entre 2002 e 2007, a ação humana respondeu por cerca de 30 emergências alimentares por ano.
O conflito armado continua a ser a razão da insegurança alimentar na maioria dos países, particularmente na África. Mas cada vez mais o que está por trás da fome causadas pela ação humana são os fatores socioeconômicos - que podem ser internos como políticas sociais e econômicas deficientes, ou externos como a alta dos preços de alimentos importados.
De uma participação praticamente insignificante na década de 80 no total de situações de emergências alimentares de responsabilidade humana, os fatores socioeconômicos passaram a explicar pelo menos uma em cada quatro emergências a partir do ano 2000.
A região da América Latina e Caribe vive em paz há décadas, com a exceção do conflito interno na Colômbia. E, segundo os dados mais recentes da FAO, têm um excedente de alimentos (já descontada as exportações) que supera os 30%.
Teríamos, portanto, a condição necessária - paz - e suficiente - produção de alimentos - para garantir a segurança alimentar de toda nossa população. No entanto, 51 milhões de pessoas na região estavam subnutridas no final de 2007. Em 1990, eram 52 milhões.
O que chama mais a atenção é que depois de conseguirmos reduzir o número de pessoas com fome para 45 milhões em 2005, a alta dos preços dos alimentos em 2006 e 2007 nos fez perder praticamente todo esse avanço. E, provavelmente, a situação terá piorado ainda mais em 2008 com a crise econômica.
Que não tenhamos conseguido acabar com a fome na região é uma prova clara de que apenas a paz e a produção de alimentos não garantem a segurança alimentar. É preciso acrescentar uma variável para completar a equação: vontade política e ação decidida dos governos, provendo recursos efetivos para acabar com a fome.
Na edição de 2008 do informe O Estado da Insegurança Alimentar no Mundo (disponível em http://www.rlc.fao.org), a FAO revela que de 77 países analisados, 16% não haviam tomado nenhuma medida normativa para enfrentar a alta dos preços dos alimentos. Segundo o documento, na América Latina e Caribe, quase um terço dos países não tomaram ações normativas com esse fim e muitos se limitaram a medidas defensivas e emergenciais, como a redução de impostos de importação.
O que estamos fazendo para ganhar a guerra contra a fome é pouco para reverter o descaso das últimas quatro décadas.
Desde a década de 70, muitos países em desenvolvimento desmantelarem sua infra-estrutura agrícola e reduziram a produção local de alimentos convencidos de que era mais fácil e barato comprar no mercado internacional alimentos subsidiados de países desenvolvidos.
O desenvolvimento da agricultura familiar perdeu importância nas agendas nacionais. O potencial produtivo desse setor foi sendo descartado e eles passaram cada vez mais a serem sujeitos de programas sociais e não de desenvolvimento.
Os recursos destinados à agricultura pela cooperação internacional também minguaram, caindo de 17% para 3% do total entre 1980 e 2006. Em termos reais, a queda foi de quase 60%, de US$8 bilhões para US$3,4 bilhões por ano (para acabar com a fome precisamos investir 10 vezes mais por ano).
Em épocas de crises agudas, a ajuda internacional passou a enfocar-se no imediato: doação de comida. Mas as emergências foram se estendendo ao longo dos anos e o que deveria ser uma resposta imediata para situações críticas, se tornou em muitos casos, uma solução permanente.
Mas sabemos o que é preciso para erradicar a fome na nossa região e no mundo.
Combater a desigualdade impulsionando políticas econômicas e sociais que promovam a inclusão e o desenvolvimento dos mais pobres. Melhores empregos e salários são essenciais para aumentar o acesso aos alimentos.
Apoiar a agricultura familiar para que ela possa tornar-se sustentável e rentável. Ela é parte da solução e não do problema, principalmente numa região na qual metade da população rural é pobre.
Destinar mais recursos para garantir o direito à alimentação para todos, o que implica em criar as condições para que todas as pessoas tenham os meios para satisfazer as próprias necessidades alimentares.
E, finalmente, fortalecer o marco jurídico da segurança alimentar. Atualmente, apenas Argentina, Brasil, Equador, Guatemala e Venezuela têm leis que asseguram esse direito. Outros 10 países da região debatem hoje o tema.
Em épocas de crise é preciso proteger os mais pobres e, para isso, leis de segurança alimentar são importantes. Em 2009, a FAO continuará dando seu apoio aos países nessa área através de ações como a implementação de uma Frente Parlamentar Latino-americana Contra a Fome, promovida pela Iniciativa América Latina e Caribe Sem Fome.
Sabemos o que fazer. Agora, só falta agir. E, para isso, falta o compromisso político de garantir os recursos necessários para acabar com a fome.
José Graziano da Silva é representante Regional da FAO para América Latina e Caribe.
Artigo originalmente publicado em 21 de janeiro de 2009 pelo jornal Valor Econômico.
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