Apoio a mulheres que querem parar de fumar deve levar em conta as problemáticas sociaisFernanda Marques
“É uma carência, é uma luta muito solitária que a mulher tem. E o cigarro é o apoio”, disse uma entrevistada que tinha câncer e não tinha com quem dividir o medo da morte. “O cigarro é pra ficar bem mais forte”, disse outra entrevistada ao expressar a dor pela morte violenta do filho. Estes depoimentos fazem parte de um estudo feito pelas pesquisadoras Márcia Terezinha Trotta Borges e Regina Helena Simões-Barbosa, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicado recentemente na revista Cadernos de Saúde Pública, periódico da Fiocruz, o trabalho revela que, entre as mulheres, cada vez mais exigidas pela família e pelo trabalho, o cigarro desempenha um papel de apoio no enfrentamento de problemas, mas cobra um preço alto pelo amparo proporcionado. O artigo destaca que, além das questões médicas, o tabagismo envolve também aspectos sócio-culturais, políticos e subjetivos, assim como a dimensão de gênero. Por isso, as pesquisadoras ressaltam que, nas estratégias de controle e prevenção do tabagismo feminino, é necessário levar todos esses fatores em consideração.
As dificuldades cotidianas, que levam as mulheres a se refugiarem no cigarro, devem ser levadas em conta na elaboração de programas de controle e prevenção do fumo (Foto: Agência Senado)
Em outras palavras, o artigo de Márcia e Regina mostra que, para retirar o cigarro da vida das mulheres, não basta convencê-las dos males à saúde: é preciso compreender o papel atribuído ao cigarro e substituí-lo por suporte não só médico, mas também social. As duas pesquisadoras entrevistaram 14 frequentadoras de um programa, em um hospital público do Rio, voltado a pessoas que querem parar de fumar. Nas conversas, “buscou-se captar as dimensões das experiências de vida, sentimentos, crenças, valores e atitudes das entrevistadas, além das singularidades em meio às diversidades culturais e sociais”, contam as autoras no artigo. Procurando compreender os significados do fumar feminino, foram abordados diversos temas, como a trajetória sócio-familiar e de gênero, assim como as vivências relacionadas ao cigarro. Também foi feita uma avaliação do programa de saúde oferecido pela instituição.
A maioria das entrevistadas encontrava-se na faixa etária de 41 a 60 anos e iniciou o fumo antes dos 13 anos, acendendo os primeiros cigarros em casa, para os familiares. Estas mulheres procuraram o programa do hospital por motivo de saúde e encontravam-se em abstinência entre dois e seis meses. Os depoimentos revelaram traços comuns entre elas: muitas tiveram uma infância pobre, marcada pelo abandono da escola e ingresso precoce no mundo do trabalho, além da ausência da figura paterna. Também não foram raros os relatos de agressões sofridas. “As situações de pobreza, que freqüentemente geram desagregação familiar e violência, marcaram profundamente essas mulheres”, dizem as autoras.
Ao falarem sobre os homens, as entrevistadas lhes atribuíram várias características negativas, ressaltando o fato de serem egoístas e pouco companheiros na hora de dividir as tarefas da casa e os cuidados com os filhos. Por outro lado, as mulheres foram quase sempre identificadas com atributos positivos, associados à figura da mãe e da guerreira. “Portanto, concomitante à crítica sobre a exploração do trabalho feminino, subsiste uma representação do feminino ideologicamente ‘naturalizada’ na maternidade, explicando e justificando a super-exploração do trabalho feminino, produtivo e reprodutivo. Essa ideologia, a nosso ver, obscurece a compreensão das interrelações entre a condição de gênero e o sistema capitalista, que explora a maioria da população trabalhadora, homens e mulheres”, destacam Márcia e Regina.
Sobrecarga de trabalho, cobranças e conflitos sociais, momentos de estresse, desgaste, sofrimento, ansiedade, raiva, impotência, solidão e rejeição: é nessas circunstâncias que as entrevistadas recorriam ao cigarro – “um suporte barato, de fácil acesso e que proporcionava alívio, mesmo que momentâneo, para tantos sentimentos dolorosos”, conforme descrevem as autoras. A partir das entrevistas, as pesquisadoras identificaram duas categorias do tabagismo feminino: o cigarro como companheiro e como fonte de prazer.
“O cigarro ‘companheiro’ é associado ao enfrentamento de situações relacionadas às contradições entre mundo público e familiar, ao alívio de sentimentos ‘negativos’ e, por fim, como compensação da solidão”, explicam Márcia e Regina. “O cigarro ‘fonte de prazer’ emerge associado a um quase ritual, realizado nos raros momentos em que se descansa dos incontáveis e incessantes ‘deveres’ e demandas da casa, do trabalho, dos filhos e de outros familiares, criando momentos íntimos de reflexão e paz, a sós consigo mesma, em contextos de vida com poucas oportunidades de privacidade, relaxamento e intimidade”, completam.
Essas dificuldades cotidianas, que levam as mulheres a se refugiarem no cigarro, devem ser levadas em conta na elaboração de programas de controle e prevenção do fumo específicos para este segmento. “Reafirmamos aqui a necessidade de considerarmos, na pesquisa e na assistência à saúde das mulheres, particularmente no tabagismo feminino, os determinantes sociais, culturais e políticos dos processos saúde/doença, neles incluídos a dimensão de gênero”, concluem as pesquisadoras.
Publicado em 26/1/2009.
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